O Supremo Tribunal Federal (STF), na sessão desta quinta-feira (21), derrubou, por 9 votos a 2, a tese do marco temporal na demarcação de terras indígenas no Brasil. Com a confirmação da decisão, será fixado o parâmetro da ocupação tradicional, posição defendida pelo Ministério Público Federal (MPF), que deverá ser utilizada em 226 processos judiciais, com controvérsia semelhante, que estão suspensos nos tribunais do país. A tese do marco temporal preconizava que povos indígenas só poderiam reivindicar áreas territoriais que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
A decisão decorreu do julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, Tema 1.031, movido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) contra ação de reintegração de posse do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). O órgão estadual obteve decisão nas instâncias inferiores da Justiça, devido à aplicação do critério do marco temporal, a reintegração de posse de área da Reserva Biológica do Sassafrás, no município de Benedito Novo (SC). A área, ocupada pela etnia Xokleng, é sobreposta a um parque estadual, mas já havia sido identificada como parte de terra indígena.
Ao ser formada maioria, a Suprema Corte acatou o recurso da Funai e devolveu a posse da região para os Xokleng, com base no conceito da ocupação tradicional e histórica do território, rechaçando, portanto, a tese do marco temporal. Por conta da repercussão geral do tema, ficou estabelecido o mesmo parâmetro para julgamentos de casos semelhantes em todo o Poder Judiciário. Votaram contra o marco temporal os ministros Edson Fachin, relator do caso, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux e Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber. Registraram votos favoráveis os ministros Nunes Marques e André Mendonça.
Assim, a demarcação de terras indígenas fica condicionada à teoria do indigenato, tese defendida pelo MPF, segundo a qual o direito dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas é originária, anterior à criação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais. A ideia privilegia a relação dos povos indígenas com a terra, essencial para a preservação de seus costumes, modos de vida e ancestralidade.
Marco temporal – A tese do marco temporal surgiu em 2009, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (PET 3.338), no estado de Roraima. Na ocasião, o STF estabeleceu como requisito para demarcação a presença indígena no território pretendido na data da promulgação da Constituição Federal, ou a comprovação de existência de conflito pela posse, o chamado esbulho renitente.
Para o procurador-geral da República, Augusto Aras, é preciso considerar os casos em que os povos indígenas foram expulsos de seus territórios, muitas vezes com uso de violência, razão pela qual não estariam ocupando suas terras na data da promulgação da Constituição de 1988. Segundo Aras, estabelecer um marco para definir as demarcações tese contradiz normas internacionais de direitos humanos das quais o Brasil é signatário.
Indenizações – Em precedente aberto pelo ministro Alexandre de Moraes, o STF estabeleceu a possibilidade do pagamento de indenizações a particulares que adquiriram terras de boa-fé em áreas que venham a ser desocupadas para titulação indígena. Pelo entendimento, proprietários que receberam títulos de terras do governo poderiam ser indenizados por benfeitorias realizadas e pela terra nua, a depender do caso. O entendimento sobre a questão ainda deverá ser firmado como ponto da tese a ser fixada.
Projeto no Senado – O marco temporal também está em debate no Congresso Nacional. O Projeto de Lei 2.903/2023, em curso no Senado Federal, dispõe sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas, limitando o direito dos indígenas à posse dos territórios ocupados em 5 de outubro de 1988. Além disso, a proposta permitiria a mineração e outras atividades econômicas dentro dos territórios originários, conforme texto aprovado pela Câmara dos Deputados no fim de maio.
O MPF, por meio de notas técnicas enviadas às casas legislativas, reiterou que o projeto em discussão, caso aprovado, consolidará uma série de violências sofridas pelos povos indígenas durante séculos. O órgão lembra que o direito dos povos indígenas sobre os territórios tradicionalmente ocupados por eles constitui cláusula pétrea da Constituição Federal, integrando um bloco de direitos e garantias fundamentais que não pode ser objeto sequer de emenda constitucional.
Recurso Extraordinário 1.017.365/SC.
(Com informações do Supremo Tribunal Federal)
Foto: Leo Bark/Comunicação/MPF